ANÁLISE DO DISCURSO: O QUE É E COMO SE FAZ


1. Fundamentos da análise do discurso: da teoria à prática social

A Análise do Discurso (AD) é uma abordagem de pesquisa crítica e um método robusto para o estudo da linguagem, seja ela escrita, falada ou não verbal, em sua intrínseca relação com o contexto social. Sua importância estratégica reside na capacidade de compreender como a linguagem não apenas reflete, mas ativamente constrói a realidade social, as relações de poder e as identidades. O discurso não é apenas um reflexo da realidade, mas também a constrói ativamente, e a AD nos oferece as ferramentas para investigar como esse processo ocorre.

A gênese da Análise do Discurso remonta à década de 1970, um período que marcou uma mudança de paradigma nos estudos da linguagem. Surgindo a partir de um diálogo entre disciplinas como linguística, sociologia, filosofia e antropologia, a AD posicionou-se como uma reação crítica às abordagens estruturalistas dominantes, que priorizavam as regras e estruturas formais da linguagem. A mudança fundamental foi a transição do foco da linguagem como um sistema abstrato para a linguagem como uma prática social, enfatizando a centralidade do contexto e do uso em situações reais de comunicação. Essa transição também utilizou novas tecnologias, como gravações de áudio e vídeo, para capturar o discurso em seu ambiente natural.

Os princípios fundamentais da AD consolidam essa visão crítica e contextual. A abordagem insiste que a linguagem está inextricavelmente entrelaçada com as relações de poder, moldando nossa compreensão do mundo. Rejeita-se a análise atomizada de frases individuais em favor de unidades maiores, como conversas e textos, para entender como o significado é construído contextualmente. O foco recai sobre o uso cotidiano da linguagem em diversas esferas, da mídia à política, buscando desvendar as estratégias discursivas utilizadas para persuadir, informar, construir identidades e, crucialmente, reproduzir ou contestar ideologias.

A natureza complexa do discurso exige uma abordagem interdisciplinar. Uma vez que o discurso ocorre na intersecção entre linguagem, sociedade e cultura, o diálogo com a Sociologia, a História, a Filosofia e a Antropologia é essencial para construir análises completas e sólidas. Essa articulação amplia o escopo da investigação, permitindo examinar as relações multifacetadas entre discurso, poder, ideologia, identidade, gênero e raça, entre outros marcadores sociais.

Para navegar neste campo de forma rigorosa, é necessário dominar um léxico específico que estrutura o pensamento analítico. A compreensão desses termos é o primeiro passo para desvendar as camadas de significado presentes em qualquer texto.

2 O léxico essencial da análise do discurso

Para realizar uma análise rigorosa e fundamentada, é crucial dominar os conceitos que formam a base teórica e metodológica da disciplina. Esses conceitos estão interligados e fornecem o arcabouço para a interpretação dos fenômenos discursivos. Esta seção serve como um glossário conceitual para guiar o pesquisador na aplicação prática da Análise do Discurso.

  • Língua É o sistema de signos (palavras, sons, gestos) que usamos para nos comunicar. Pense nela como um conjunto de regras e elementos que todos compartilhamos.
    • Exemplo: A língua portuguesa, com suas regras gramaticais e vocabulário.
  • Discurso É o uso da língua em um contexto específico, com um objetivo comunicativo. É a língua em ação, carregada de sentidos e ideologias.
    • Exemplo: Um discurso político em um comício, um artigo de jornal, uma conversa entre amigos.
  • Interação É a troca de mensagens entre duas ou mais pessoas, seja de forma verbal ou não verbal. O discurso se constrói na interação.
    • Exemplo: Uma conversa em um aplicativo de mensagens, uma entrevista de emprego, uma aula.
  • Ato de fala É a ação que realizamos ao falar, como prometer, ordenar, perguntar, etc. Cada ato de fala tem uma intenção por trás.
    • Exemplo: “Eu prometo que vou estudar” (promessa), “Feche a porta!” (ordem), “Que horas são?” (pergunta).
  • Argumentação É o processo de apresentar argumentos (razões, evidências) para defender uma ideia ou persuadir alguém.
    • Exemplo: Um debate sobre um tema polêmico, um texto de opinião, uma propaganda.
  • Heterogeneidade discursiva O discurso é heterogêneo, ou seja, é formado por diferentes vozes e perspectivas, que podem ser explícitas (citações) ou implícitas (alusões, pressupostos).
    • Exemplo: Em um artigo de jornal, podemos identificar a voz do autor, as vozes de outras pessoas citadas e as vozes implícitas das ideologias que circulam na sociedade.
  • Materialidade linguística O discurso se materializa através da linguagem, ou seja, as escolhas linguísticas (palavras, estruturas gramaticais) que fazemos refletem e constroem o sentido do discurso.
    • Exemplo: O uso de palavras como “terrorista” ou “combatente da liberdade” para se referir a uma mesma pessoa, dependendo da posição ideológica de quem fala.
  • Gêneros textuais São formas relativamente estáveis de discurso que se caracterizam por sua função social, estrutura e estilo.
    • Exemplo: Notícia, conto, poema, receita, email, etc.
  • Tipologias discursivas São categorias mais amplas que agrupam gêneros textuais com características semelhantes em termos de sua função e estrutura.
    • Exemplo: Narrar, descrever, argumentar, expor, injungir.
  • Dialogismo Todo discurso é dialógico, ou seja, está em diálogo com outros discursos que o antecederam e o sucederão. O discurso se constrói em relação a outros discursos.
    • Exemplo: Um discurso político que responde a críticas de um adversário, um artigo científico que se baseia em pesquisas anteriores.
  • Polifonia Conceito relacionado ao dialogismo, indica que o discurso é polifônico, ou seja, contém múltiplas vozes, que podem concordar ou discordar entre si.
    • Exemplo: Um romance que apresenta diferentes personagens com diferentes pontos de vista, um artigo de opinião que cita diferentes autores.

Com a compreensão desses conceitos fundamentais, o pesquisador está preparado para a próxima etapa crucial do processo de pesquisa: a escolha de uma lente teórica para aplicar esses conceitos e guiar a análise.

3 Selecionando a lente teórica: abordagens e estruturas analíticas

A escolha do referencial teórico é talvez a decisão metodológica mais importante na Análise do Discurso. O referencial não é apenas um adorno acadêmico; ele define o foco da investigação, o tipo de questões de pesquisa que podem ser formuladas e as ferramentas conceituais que guiarão todo o processo. Diferentes abordagens teóricas oferecem lentes distintas para interpretar os fenômenos discursivos, enriquecendo a análise e permitindo uma compreensão mais profunda do objeto de estudo.

As diversas escolas de pensamento em AD podem ser organizadas em três grandes tendências:

  • Formalistas: Focam na estrutura e organização do discurso, utilizando ferramentas linguísticas para analisar padrões e regularidades. São influenciadas pela linguística estruturalista e gerativa. Exemplos incluem a Análise do Discurso de linha francesa (Pêcheux) e a Gramática Sistêmico-Funcional (Halliday).
  • Sociológicas: Enfatizam o contexto social e as relações de poder que influenciam a produção e interpretação do discurso. Suas influências vêm da sociologia, antropologia e etnografia. Exemplos notáveis são a Etnografia da Fala (Hymes) e a Sociolinguística Interacional (Gumperz).
  • Históricas: Investigam a relação entre o discurso e o contexto histórico, buscando compreender como mudanças sociais e culturais afetam a produção de sentidos. São influenciadas pela história, filosofia e estudos culturais, como visto na Nova História (Burke) e na História das Ideias (Foucault).

É importante ressaltar que essas tendências não são excludentes, e muitas vezes se complementam na análise do discurso. Uma análise completa pode combinar elementos de diferentes abordagens para obter uma compreensão mais abrangente do discurso e seus efeitos.

3.1 Análise do discurso foucaultiana

  • Figura-chave: Michel Foucault;
  • Foco analítico: examina como as relações de poder são moldadas e mantidas por meio do discurso. Investiga como o discurso constrói conhecimento, verdade e identidade, e como essas construções são usadas para exercer poder e controle social;
  • Conceitos centrais: poder/saber, discurso, episteme, arqueologia do conhecimento, genealogia;
  • Exemplo de aplicação: analisar como o discurso médico constrói a ideia de “loucura” e como essa construção tem sido usada para justificar o controle e o confinamento de indivíduos considerados doentes mentais.

3.2 Análise crítica do discurso (ACD)

  • Figuras-chave: Norman Fairclough, Ruth Wodak, Teun van Dijk;
  • Foco analítico: busca expor como a linguagem e o discurso são usados para criar e manter a desigualdade social e a injustiça. Com uma postura politicamente engajada, a ACD analisa textos para revelar estruturas de poder e ideologias ocultas, visando denunciar e combater injustiças;
  • Conceitos centrais: ideologia, hegemonia, poder, desigualdade social, discurso, texto, contexto;
  • Exemplo de aplicação: examinar como o discurso da mídia representa imigrantes e refugiados, e como essa representação pode contribuir para o preconceito e a discriminação. 

3.3 Análise do discurso pecheuxiana

  • Figura-chave: Michel Pêcheux;
  • Foco analítico: analisa como o discurso é moldado por estruturas ideológicas subjacentes e como os indivíduos são posicionados (interpelados) dentro dessas estruturas. Baseia-se na teoria marxista para investigar a relação entre linguagem, ideologia e sujeito;
  • Conceitos centrais: ideologia, interpelação, posição de sujeito, discurso, materialismo;
  • Exemplo de aplicação: analisar como o discurso político interpela os indivíduos como “trabalhadores” ou “capitalistas” e como esse posicionamento influencia sua compreensão das questões sociais e econômicas.

3.4 Análise de conversação (AC)

  • Figuras-chave: Harvey Sacks, Emanuel Schegloff, Gail Jefferson;
  • Foco analítico: realiza uma análise minuciosa de conversas que ocorrem naturalmente, focando na organização sequencial da interação. Examina como as pessoas usam a linguagem para gerenciar turnos de fala, atingir objetivos e construir a ordem social momento a momento;
  • Conceitos centrais: turnos de fala, pares adjacentes, reparo, organização de preferências, organização sequencial;
  • Exemplo de aplicação: analisar como as pessoas iniciam e respondem a reclamações em conversas cotidianas e como essas interações são estruturadas e organizadas. 

3.5 Etnografia da comunicação

  • Figuras-chave: Dell Hymes, John Gumperz;
  • Foco analítico: investiga como a linguagem é usada em diferentes contextos culturais, examinando a relação intrínseca entre linguagem, cultura e comunicação e como esses fatores moldam a interação social;
  • Conceitos centrais: competência comunicativa, comunidade de fala, evento de fala, ato de fala, contexto;
  • Exemplo de aplicação: analisar como diferentes grupos culturais usam a linguagem para expressar polidez ou como usam a comunicação não verbal em diferentes ambientes sociais. 

3.6 Linguística textual e sua distinção da AD

  • Distinção-chave: a linguística textual (LT) é um campo correlato, mas com um escopo distinto. Enquanto a LT se concentra nas características linguísticas do texto em si (coesão, coerência, estrutura), a AD vai além, analisando o texto como um produto social e ideológico, inserido em um contexto específico de produção e circulação. Para o analista do discurso, as ferramentas da LT são úteis para a análise da materialidade linguística, mas o objetivo final é conectar essa materialidade às práticas sociais e às relações de poder. 

3.7 Sociolinguística Interacional

  • Figuras-chave: John Gumperz, Deborah Tannen
  • Foco analítico: inspirada em Erving Goffman, foca em como a linguagem é usada para criar e negociar significado social na interação. Examina o papel do contexto, da cultura e da variação individual na configuração da comunicação.
  • Conceitos centrais: pistas de contextualização, quadros, footing, estilo, identidade.
  • Exemplo de aplicação: analisar como os mal-entendidos surgem na comunicação intercultural devido a diferenças nas pistas de contextualização ou estilos de comunicação.

3.8 Psicologia Discursiva

  • Figuras-chave: Jonathan Potter, Margaret Wetherell;
  • Foco analítico: desafia as abordagens cognitivas tradicionais ao focar em como os fenômenos psicológicos (memória, emoção, identidade) são construídos e negociados por meio do discurso, enfatizando a natureza social da mente;
  • Conceitos centrais: construcionismo social, discurso, identidade, memória, emoção;
  • Exemplo de aplicação: analisar como as pessoas falam sobre suas memórias e como esses relatos são moldados por fatores sociais e discursivos. 

3.9 Análise do Discurso Institucional

  • Figura-chave: Alice Krieg-Planque;
  • Foco analítico: analisa os discursos institucionais e a maneira como eles constroem a realidade social e legitimam o poder. Enfatiza a identificação de "fórmulas" discursivas que cristalizam questões sociais e políticas (enjeux);
  • Conceitos centrais: contexto institucional, fórmula discursiva, discurso de poder, legitimação, enjeux sociais;
  • Exemplo de aplicação: analisar os discursos das instituições educativas sobre o “sucesso escolar” para identificar as fórmulas utilizadas e compreender como elas constroem uma determinada visão da educação e dos alunos.

3.10 Linguística Sistêmico-Funcional (LSF)

  • Figura-chave: Michael Halliday
  • Foco analítico: compreende a linguagem como um sistema de escolhas para construir significados em contextos sociais. A LSF analisa a linguagem como um recurso para a realização de ações sociais, com foco na função comunicativa dos enunciados. A análise de suas metafunções permite ao pesquisador desconstruir sistematicamente como um texto posiciona seus leitores, representa o mundo e organiza sua própria mensagem, oferecendo uma visão holística de sua função social;
  • Conceitos centrais:
    • Metafunções da linguagem:
      • Ideacional: como a linguagem representa o mundo (processos, participantes, circunstâncias).
      • Interpessoal: como a linguagem é usada para interagir com os outros (modalidade, tom, avaliação).
      • Textual: como a linguagem organiza a mensagem (tema, coesão).
    • Registro: variação da linguagem de acordo com o contexto (campo, teor, modo).
  • Exemplo de aplicação: analisar um artigo científico para identificar como a informação é organizada no texto? Quais os recursos coesivos utilizados? Qual a função do Tema e do Rema em cada oração? Quais os processos (ações, eventos, estados) que estão sendo descritos? Quais os participantes envolvidos? Quais as circunstâncias? Qual a postura do autor em relação ao tema? Que tipo de modalidade é utilizada? Como o autor se relaciona com o leitor?

Uma vez selecionada a lente teórica mais adequada ao objeto de estudo, o pesquisador está preparado para iniciar o processo prático de análise, que será detalhado na próxima seção.

4 O Processo de pesquisa em análise do discurso: um roteiro prático

Esta seção apresenta um guia passo a passo, um fluxo de trabalho metodológico projetado para traduzir a teoria em uma análise prática, sistemática e organizada. Seguir uma sequência lógica é fundamental para garantir a validade, a clareza e a profundidade da pesquisa em Análise do Discurso, assegurando que as interpretações sejam rigorosamente fundamentadas nos dados.

4.1 Definição da questão de pesquisa

O ponto de partida de qualquer análise robusta é uma pergunta de pesquisa clara e bem delimitada. Ela deve orientar todo o processo, desde a seleção do material até a interpretação final. Uma boa questão define o que você está interessado em explorar no discurso.

  • Exemplo 1: Como o gênero é representado em discursos de campanhas políticas X?
  • Exemplo 2: Como os artigos de notícias sobre Y enquadram uma questão social específica?
  • Exemplo 3: Como as interações médico-paciente do SUS refletem as dinâmicas de poder na área da saúde no período Z?
  • Exemplo 4: Como as comunidades religiosas W enfrentam tensões políticas polarizadas no país V? 

4.2 Seleção e construção do corpus

Com a pergunta definida, o próximo passo é escolher os textos que serão analisados. O corpus pode ser composto por uma variedade de materiais:

  • Textos escritos: livros, artigos, discursos, postagens de mídias sociais, documentos legais.
  • Linguagem falada: entrevistas, conversas, grupos focais, discursos.
  • Linguagem não verbal: performances, ilustrações.

Para material falado, é indispensável criar uma transcrição escrita detalhada. Se a análise envolver um grande volume de dados, a criação de um corpus (um conjunto sistematizado de textos) é recomendada.

4.3 Codificação e análise textual

Esta é a fase de imersão no material. Leia os textos múltiplas vezes e codifique sistematicamente os recursos discursivos relevantes para sua pergunta de pesquisa. Preste atenção especial aos seguintes elementos:

  • Escolhas linguísticas: seleção de palavras, metáforas, pronomes, estruturas gramaticais;
  • Argumentações retóricas: uso de repetição, enquadramento, perguntas retóricas, apelos emocionais;
  • Temas e tópicos: ideias, argumentos ou perspectivas recorrentes.
  • Estrutura e organização: como o texto é organizado, quem fala, quem é citado e em que ordem;
  • Pistas contextuais: quem produziu o texto, quando, onde e para qual público.

4.4 Identificação de padrões e relações

Após a codificação inicial, o objetivo é ir além da identificação de elementos isolados para encontrar padrões e relações mais amplas no corpus. Procure por:

  • Discursos dominantes: Quais perspectivas ou ideologias são mais proeminentes?
  • Vozes excluídas ou marginalizadas: Quais vozes estão ausentes, silenciadas ou minimizadas?
  • Silêncios e ênfases: Quais assuntos são sistematicamente evitados e quais são enfatizados?
  • Contradições e inconsistências: Existem tensões ou rupturas dentro do texto ou entre textos?
  • Relações entre linguagem e contexto: Como as escolhas linguísticas se conectam ao contexto social e histórico da produção do discurso?
  • Tons e subentendidos: quais tons, sentimentos, inuendos presentes no texto?

4.5 Interpretação dos resultados

Esta etapa envolve a síntese dos padrões identificados para responder à sua pergunta de pesquisa inicial. É o momento de atribuir significado às suas descobertas, conectando a análise textual à teoria. Utilize perguntas-guia para orientar a interpretação:

  • Quais são as principais mensagens (explícitas e implícitas) transmitidas pelo texto?
  • Como o texto contribui para nossa compreensão do fenômeno social que você está estudando?
  • Quais são as implicações sociais, políticas ou culturais de suas descobertas? 

4.6 Estruturação e redação da análise

A etapa final é apresentar sua análise de forma clara, coesa e organizada. Uma estrutura padrão para a redação acadêmica inclui:

  1. Introdução: apresente sua pergunta de pesquisa e o contexto do estudo;
  2. Metodologia: descreva o referencial teórico, o corpus selecionado e os procedimentos de análise;
  3. Resultados: apresente suas descobertas, ilustrando-as com exemplos concretos do texto;
  4. Discussão: discuta as implicações de seus resultados, conectando-os à teoria e ao contexto mais amplo.

Além deste processo metodológico, a qualidade da análise depende de uma postura crítica e do uso de ferramentas adequadas, temas que serão abordados a seguir.

5 Ferramentas, técnicas e considerações críticas

Uma análise de discurso robusta transcende a aplicação mecânica de um método. Ela exige uma postura de reflexividade por parte do pesquisador, uma consideração profunda do contexto e o uso inteligente de ferramentas que podem apoiar, mas nunca substituir, o trabalho interpretativo.

5.1 Considerações metodológicas essenciais

Para garantir o rigor e a profundidade da análise, três princípios são fundamentais:

  1. Reflexividade: o pesquisador deve estar ciente de seus próprios preconceitos, suposições e lugar social. É crucial refletir sobre como essas posições podem influenciar a seleção do corpus, a codificação e a interpretação dos dados, buscando mitigar vieses e aumentar a objetividade da análise;
  2. Contexto: nenhum discurso existe no vácuo. É imperativo considerar sempre o contexto social, histórico e cultural mais amplo em que o texto foi produzido e circula. O significado de um enunciado está indissociavelmente ligado às suas condições de produção;
  3. Múltiplas Interpretações: é preciso reconhecer que pode haver múltiplas interpretações válidas do mesmo texto. A Análise do Discurso não busca uma "verdade" única, mas sim desvendar os possíveis sentidos e os efeitos que um discurso pode gerar em diferentes públicos e contextos.

5.2 Ferramentas de apoio à análise

O processo analítico, especialmente com grandes volumes de dados, pode ser auxiliado por diversas ferramentas tecnológicas. Elas servem para otimizar a organização e identificação de padrões, mas a interpretação final permanece como uma tarefa do pesquisador.

  • Software de análise de dados qualitativos: Programas como NVivo, Atlas.ti e MAXQDA são projetados para ajudar na codificação, organização e visualização de dados textuais, facilitando a identificação de temas e padrões;
  • Ferramentas de análise de texto: Ferramentas mais simples podem ajudar a identificar padrões no uso da linguagem, como a frequência de palavras ou a análise de sentimentos, oferecendo um ponto de partida para uma análise mais profunda;
  • Uso de Inteligência Artificial: Ferramentas como Perplexity e Gemini podem ser usadas para uma análise inicial. Recomenda-se criar prompts detalhados e, ao trabalhar com versões gratuitas, dividir o texto em trechos menores para uma primeira varredura, seguida por uma reanálise consolidada do material completo.

A etapa final para garantir a profundidade acadêmica e a relevância da pesquisa é colocar as próprias descobertas em diálogo com os teóricos que fundaram e desenvolveram o campo da Análise do Discurso.

6 Dialogando com os Teóricos Fundamentais

Situar a própria análise em um diálogo com a literatura clássica e contemporânea é um passo indispensável para conferir profundidade, rigor e legitimidade à pesquisa. Engajar-se com os pensadores que estabeleceram os alicerces da Análise do Discurso permite contextualizar as descobertas, refinar os argumentos e contribuir de forma significativa para o campo do conhecimento.

  • Ferdinand de Saussure: sua concepção da língua como um sistema de signos inter-relacionados e a distinção entre língua (o sistema social abstrato) e fala (o uso individual) foram fundamentais. Essa visão deslocou o foco do indivíduo para a estrutura social e ideológica da linguagem, abrindo caminho para a AD;
  • Louis Althusser: introduziu o conceito de ideologia como um sistema de representações que molda a percepção da realidade e a teoria dos Aparelhos Ideológicos de Estado (escola, mídia, etc.). A AD passou a investigar como o discurso é utilizado por essas instituições para difundir e manter ideologias dominantes;
  • Michel Foucault: demonstrou a ligação intrínseca entre discurso e poder, mostrando como o discurso produz "regimes de verdade" e regula o que pode ser dito e pensado. Seu conceito de formações discursivas forneceu ferramentas para analisar as regras e regularidades que governam a produção de enunciados em um determinado contexto;
  • Jacques Lacan: sua teoria do sujeito dividido pelo inconsciente e constituído pelo Outro (linguagem, cultura) influenciou a compreensão de como o discurso molda a subjetividade. A ideia do inconsciente estruturado como linguagem permitiu à AD explorar os significados simbólicos e ocultos nos textos;
  • Jean Dubois: contribuiu com a noção de enunciação, que destaca a importância do contexto (quem fala, para quem, onde, quando) na produção de sentido. Seus estudos sobre a gramática do discurso forneceram ferramentas para analisar as estruturas linguísticas e seus efeitos de sentido;
  • Michel Pêcheux: articulou marxismo e linguística para desenvolver uma teoria materialista do discurso. Argumentou que o sujeito é interpelado pela ideologia através do discurso e enfatizou a análise das condições de produção sociais e históricas. Sua noção de formações imaginárias aponta para as representações que os sujeitos constroem de si e do mundo;
  • Dominique Maingueneau: aprofundou a noção de cena enunciativa (o espaço de comunicação criado pelo discurso), analisou os gêneros do discurso como formas de ação social e desenvolveu o conceito de ethos discursivo (a imagem que o enunciador constrói de si mesmo);
  • Patrick Charaudeau: propôs o conceito de contrato de comunicação, que define as regras implícitas da interação discursiva. Dedicou-se à análise do discurso midiático, investigando como a mídia constrói representações da realidade e influencia a opinião pública;
  • François Rastier: Desenvolveu a semântica interpretativa, uma abordagem que descreve o significado dos textos a partir da análise das relações entre seus elementos (isotopias, ou recorrência de temas). Propôs diferentes níveis de análise para compreender a organização do sentido;
  • Christian Plantin: Contribuiu com estudos sobre a análise da argumentação, demonstrando como os discursos buscam persuadir através de estratégias argumentativas, tipos de provas e recursos retóricos;
  • Catherine Kerbrat-Orecchioni: Dedicou-se à análise conversacional, investigando as regras, rituais e estratégias interacionais presentes nas trocas verbais, fornecendo ferramentas essenciais para a análise do discurso oral e da negociação de sentidos na interação face a face.

Ao estabelecer essa conexão com os teóricos, o pesquisador eleva sua análise de uma mera descrição para uma interpretação crítica e fundamentada, que dialoga com a tradição do campo.

7 Conclusão: A Análise do Discurso como Ferramenta Crítica

Este guia apresentou os componentes essenciais para a realização da Análise do Discurso, desde a compreensão de seus conceitos fundamentais e a escolha de uma lente teórica até a execução de um roteiro prático de pesquisa e o diálogo com os autores que moldaram o campo. O percurso demonstra que a AD é um empreendimento intelectual complexo, que exige tanto rigor metodológico quanto sensibilidade interpretativa.

A mensagem central é que a Análise do Discurso transcende a condição de mera metodologia; ela é, em sua essência, uma postura crítica e reflexiva diante da linguagem e do mundo social. Sua força reside na capacidade de ir além da superfície dos textos para desvendar as camadas mais profundas de sentido, as ideologias subjacentes e as relações de poder que se manifestam, se reproduzem e são contestadas por meio da linguagem. Por essa razão, a Análise do Discurso mantém seu valor duradouro como uma ferramenta indispensável para a pesquisa crítica nas ciências humanas e sociais. 

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